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17 de janeiro de 2012

A alma musical das ruas do Rio, ontem e hoje.

Renan Siqueira Moraes, estudante do 7º período de história da UERJ e membro do Grupo de Atividades Ítaca.


Introdução

Nas linhas que se seguem adiante, procura-se uma análise da musicalidade da cidade do Rio de Janeiro. Por meio de uma comparação feita entre começo do século XX e o XXI, tenta-se apreender como a cidade foi e ainda é musical. Esta comparação é feita por uma perspectiva analítica da crônica do João do Rio, “Músico ambulante”, do livro de crônicas “A encantadora alma das ruas”, e uma outra perspectiva mais empírica de constatação nas andanças pela cidade.

O musical Rio de João

João do Rio inicia sua crônica falando da transumância dos músicos na cidade do Rio de Janeiro. Ele propõe que o desaparecimento dos músicos não se relaciona com os aparelhos de grafofone ou gramofone, inseridos nos cafés, hotéis e botequins da cidade. Mas que quando menos se espera os músicos voltam a aparecer na cidade, expulsando o ar modernista dos aparelhos, e pondo ao gracejo do bom ouvido e do bom publico, uma boa sinfonia. O cronista cita diversos exemplos sobre estes músicos que ora somem e por outra aparecem da cidade. Para ele, o Rio de Janeiro é uma cidade musical, o que se olharmos de hoje é uma evidente constatação, porém, trata-se do inicio do século, onde a música é embalada pelas marchinhas, modinhas e as bandas; não se contava com o samba, e a boemia era diferente.
Outra percepção do autor, e que ele pretende desmistificar, é o aspecto que se dá ao musico como de uma pessoa sofrida, que “morre de fome ao cair das ilusões”. Segundo ele, não aqui, “talvez em outras terras, mais gastas e mais frias” os músicos sucumbam à miséria de uma sofrida vida de ilusões. Pegando a biografia dos pedintes e pretensiosamente sôfregos músicos, pode-se perceber uma vida mui prospera. Algumas regadas a “jogos, mulheres e vinho”, outras de tranqüilidade, mas não em miserabilidade. O que há é uma “fachada” para que se tenha compaixão, mas por trás dela “há tanto interesse como no negociante mais avaro”.
Portanto, a crônica de João do Rio segue duas linhas de pensamento: uma é a de que a tecnologia modernista não acabara com a tradição musical da cidade e a outra é que por trás da fachada do pedinte músico, existe uma vida de muita prosperidade.

Os músicos da cidade hoje

A cidade hoje continua muito musical, há diversos festivais de músicas, os músicos estão entre os “heróis” da cidade, sua decoração se baseia na música, o seu aspecto sonoro lhe é peculiar. Movida a música, o Rio de Janeiro o é em diversos sentidos, porém, será que aquelas linhas de pensamento de João do Rio ainda permanecem. Observemos!
A tecnologia da modernidade de hoje, fluida, não acaba com os músicos da cidade. Tal como o grafofone, os cds player, mp3, aparelhos de som cheio de utilidades, enfim, todas estas parafernálias não tiram o sentido da música levada por uma viola ou guitarra. Mas estes músicos acabam tendo seus espaços restritos; no entanto, paradoxalmente, devido à super velocidade desta modernidade, os músicos acabam por encontrar novos espaços, como os shopping centers, e novos meios de fazerem música, como os Djs. Porém, alguns lugares tradicionais ainda permanecem, mas com nova roupagem, como o boteco, os bailes, as folias, etc. A modernidade acelerada de hoje parece não ter extinguido os músicos, como nos tempo de João do Rio, eles podem sumir por um tempo, mas tornam a cidade fazendo dela uma sonora metrópole.
Sobre o aspecto do músico paupérrimo, podemos constatar dois pontos: os músicos que se aglomeram no Largo da Carioca, tentando vender seus cds; e os músicos que tocam em noites, nas baladas e nos botecos. Apenas para observarmos estes dois pontos, excluímos tantos outros, mas esta exclusão serve para aproximar nosso exemplo com os músicos de João do Rio. Portanto, à margem da generalização, podemos dizer que nos dias de hoje nem todo músico pode se esbanjar nos jogos, nas mulheres e no vinho, sobretudo aqueles do Largo da Carioca. Estes normalmente têm família, e acaba vivendo (ou sobrevivendo) da música. Os músicos da noite acabam por se esbaldar mais na tríade mulher, álcool e jogo, pois já estão inseridos num clima propício para tal.
Portanto, na cidade alguns aspectos permaneceram e outros não. Algumas tradições mudaram, foram incorporadas em novos e espaços e lugares, em novos sentidos. A modernidade do alvorecer do século XXI não limitou a sonoridade da cidade, seus carros, suas obras e todo o resto, lhe soa peculiar. Pois, no Rio de Janeiro poderia se tirar uma melodia no caos sonoro de seu dia-a-dia.

Consideração final

À maneira de uma abrupta conclusão, podemos constatar que o Rio de Janeiro é uma cidade musical, que se seus tradicionais músicos não desapareceram há um século, não poderiam neste agitado começo de século sumir. Cidade musical, o Rio de Janeiro possui na sonoridade um sentido particular de sua identidade: Rio do samba, das marchinhas e da bossa; Rio dos bambas, dos boêmios e dos malandros; Rio de Saldanha, de Donga, Noel, Pixinguinha, Vinicius, Tom e Cartola. Rio de Janeiro, a encantadora cidade maravilhosa, das ruas tortuosas, de músicos a pedir dinheiro para jogar no bicho na primeira esquina. A cidade que tem a música na alma!

Bibliografia:

RIO, João do. Músicos ambulantes. In. ___ A alma encantadora das Ruas. São Paulo: Cia. de Bolso, 2008.

9 de janeiro de 2012

História vista de baixo e micro-história. Um micro-ensaio sobre as formas de olhar o passado.

Renan Siqueira Moraes, estudante do 7º período de história da UERJ e o novo membro do Grupo de Atividades Ítaca.

“Um historiador deve estar decididamente interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido”.
Edward Palmer Thompson



Certa vez um historiador britânico, dos mais afeitos à renovação de sua disciplina e também de uma antiga tradição, compreendeu que se deve escapar da perigosa tentativa de apreender a história teleológicamente. Dessa forma, o que o tal historiador pretendia era resgatar dos “ares superiores de condescendência da posteridade” o qualitativo da vida destes sujeitos passados. Edward Palmer Thompson, um dos precursores da idéia de História Vista a partir de Baixo (History from Below), inovou a historiografia inglesa, não só a marxista, mas como todo debate acerca da interdisciplinaridade e da história social.
Na Itália, os anos eram de decadência para a esquerda que se mostrava cansada após os atos terroristas e o retorno do conservadorismo. A necessidade de suplantar aquele vácuo era grande, as soluções imaginadas vinham de fora. Era fora da Itália que se produziam as matérias primas para o diálogo entre a História e as outras Ciências Sociais. Bem disse um autor que a historiografia italiana muito devia à francesa e que a saída dos italianos neste “mercado historiográfico” era a micro-história, foram Carlo Ginzburg e Carlo Poni que fizeram estas observações no final dos anos de 1970. E os italianos deram ao mundo a micro-análise, a possibilidade da perspectiva ao microscópio.
As duas maneiras de observar o passado surgiram num contexto similar, nos idos finais dos anos de 1950 e no decorrer dos 1970. As personagens desta aproximação partem, obviamente, de uma formação diversa, mas se aproximam no decorrer de suas vidas intelectuais. Com efeito, Thompson, Ginzburg, Levi e Grendi, têm alguns pontos característicos entre si. É o olhar ao subalterno, a tentativa de captar a qualidade do vivido, a busca da inovação de seus campos de pesquisa, a atenção dispensada à interdisciplinaridade, e, sobretudo, a fuga do discurso sobre a decadência da razão, que unem estes quatros historiadores.
Daqueles historiadores citados no parágrafo acima, sem dúvidas o menos conhecido do leitor brasileiro é Grendi, ao passo que Ginzburg e Thompson são celebres leituras dos estudantes de cá. Porém, entre Thompson e Ginzburg existe uma conexão, um historiador que saíra da Itália para se aprimorar em Londres e no retorno ao país natal trouxe daquela cidade todo debate sobre a história social e a efervescência que girava em torno deste debate, este historiador era Edoardo Grendi. Levando para a Itália toda uma bagagem de discussões sobre a economia, a antropologia econômica, as ciências sociais (em particular a sociologia) e etc., para uma abordagem da história local em Gênova; Grendi influenciará os estudos de Ginzburg e Levi, lembrando que aquele volta à Itália no começo dos anos de 1960 quando Levi e Ginzburg estão nos seus primeiros escritos.
Da história local para a micro-história, a interferência da história social e da antropologia foram demasiadamente importantes. Buscando analisar uma fonte serial com um maior rigor qualitativo, escrevia-se uma história que procurava articular o micro com o macro. A micro-análise, fruto de todo este debate que envolve o contexto supracitado e as contribuições das historiografias francesa e inglesa, também é herdeira do pensamento de Gramsci. Neste sentido, um dos temas que permeia as obras com a micro-análise é a “classe subalterna” que Antonio Gramsci desenvolveu. Para apreender a classe subalterna, esta forma de olhar o passado foi posta no nível das relações interpessoais. Fora na pretensão de diminuir o escopo que se apreendeu uma saída para as questões sobre a disciplina em voga na época, a história quase biográfica trazia o sentido de analisar não as “gestas dos reis”, mas àqueles que construíram Tebas das sete portas. A microstorie abriu um campo de possibilidades onde se dava agora a voz tirada no passado do moleiro num processo da Igreja Católica, Menocchio teve sua voz resgatada por Carlo Ginzburg em sua análise microscópica.
Da mesma maneira, porém um pouco antes, procurava-se, na Inglaterra, resgatar a história do “pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do tear ‘obsoleto’, o artesão ‘utópico’ (...)”. A intenção aqui também era uma análise qualitativa do passado. Nestas páginas de um curto, porém denso, prefácio, Thompson preparava o campo para sua análise vista de baixo. Ver por baixo o passado possibilitaria ao historiador perceber a história dos vencidos, dos pobres soldados que são extirpados da história, do trabalhador que construiu uma cidade e que não teve sua obra reconhecida, etc. Quando se vê de baixo para cima, percebe-se primeiro a classe subalterna; neste sentido, pode-se perceber a proximidade da história vista de baixo e a micro-história, pois, para além da qualidade da vida que ficou no passado, busca-se àqueles que foram esquecidos, silenciados: pobres agricultores, pequenos soldados, moleiros que se diferenciam do seu vilarejo, trabalhadores que formam consciência de classe...
Não é interesse esgotar o assunto da micro-história e da história vista de baixo nestas poucas linhas, para isso seria preciso uma coleção não muito pequena. A proposta aqui é lançar luz sobre um debate muito fecundo que perpassa já seis décadas e não deixa de ser atual. A tentativa de apreender uma história que possibilite uma nova visão deu ao mundo historiográfico novos problemas, estamos num tempo senão tão diferente, pelo menos com suas peculiaridades. Isso exige de nós, pretensos historiadores, uma “vontade de saber” que possibilite outras visões. Duas formas de olhar o passado deram aos historiadores ferramentas deveras boas para esta percepção, e mesmo com o tempo, não se tornou ainda obsoleto, porém, temos de desenvolver nossas ferramentas. Faz-se necessário uma nova maneira de olhar o passado. A dialética do micro e do macro e a história que se faz de baixo nos deu excelentes obras, porém outros tempos exigem outras teorias que modificam a prática que por sua vez fazem necessidade de nova teoria.

Apêndice

Algumas obras destes historiadores para melhor compreensão destas formas de olhar o passado:

THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa.
________. A história vista de baixo.
GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social.
________. Repensar a micro-história?
LEVI, Giovanni. Sobre a micro história.
_______. Herança imaterial. Carreira de um exorcista no Piemonte do século XVII.
GINZBURG, Carlo. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário.
_______. Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito.