Renan Siqueira Moraes, estudante do 7º período de história da UERJ e o novo membro do Grupo de Atividades Ítaca.
“Um historiador deve estar decididamente interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido”.
Edward Palmer Thompson
Certa vez um historiador britânico, dos mais afeitos à renovação de sua disciplina e também de uma antiga tradição, compreendeu que se deve escapar da perigosa tentativa de apreender a história teleológicamente. Dessa forma, o que o tal historiador pretendia era resgatar dos “ares superiores de condescendência da posteridade” o qualitativo da vida destes sujeitos passados. Edward Palmer Thompson, um dos precursores da idéia de História Vista a partir de Baixo (History from Below), inovou a historiografia inglesa, não só a marxista, mas como todo debate acerca da interdisciplinaridade e da história social.
Na Itália, os anos eram de decadência para a esquerda que se mostrava cansada após os atos terroristas e o retorno do conservadorismo. A necessidade de suplantar aquele vácuo era grande, as soluções imaginadas vinham de fora. Era fora da Itália que se produziam as matérias primas para o diálogo entre a História e as outras Ciências Sociais. Bem disse um autor que a historiografia italiana muito devia à francesa e que a saída dos italianos neste “mercado historiográfico” era a micro-história, foram Carlo Ginzburg e Carlo Poni que fizeram estas observações no final dos anos de 1970. E os italianos deram ao mundo a micro-análise, a possibilidade da perspectiva ao microscópio.
As duas maneiras de observar o passado surgiram num contexto similar, nos idos finais dos anos de 1950 e no decorrer dos 1970. As personagens desta aproximação partem, obviamente, de uma formação diversa, mas se aproximam no decorrer de suas vidas intelectuais. Com efeito, Thompson, Ginzburg, Levi e Grendi, têm alguns pontos característicos entre si. É o olhar ao subalterno, a tentativa de captar a qualidade do vivido, a busca da inovação de seus campos de pesquisa, a atenção dispensada à interdisciplinaridade, e, sobretudo, a fuga do discurso sobre a decadência da razão, que unem estes quatros historiadores.
Daqueles historiadores citados no parágrafo acima, sem dúvidas o menos conhecido do leitor brasileiro é Grendi, ao passo que Ginzburg e Thompson são celebres leituras dos estudantes de cá. Porém, entre Thompson e Ginzburg existe uma conexão, um historiador que saíra da Itália para se aprimorar em Londres e no retorno ao país natal trouxe daquela cidade todo debate sobre a história social e a efervescência que girava em torno deste debate, este historiador era Edoardo Grendi. Levando para a Itália toda uma bagagem de discussões sobre a economia, a antropologia econômica, as ciências sociais (em particular a sociologia) e etc., para uma abordagem da história local em Gênova; Grendi influenciará os estudos de Ginzburg e Levi, lembrando que aquele volta à Itália no começo dos anos de 1960 quando Levi e Ginzburg estão nos seus primeiros escritos.
Da história local para a micro-história, a interferência da história social e da antropologia foram demasiadamente importantes. Buscando analisar uma fonte serial com um maior rigor qualitativo, escrevia-se uma história que procurava articular o micro com o macro. A micro-análise, fruto de todo este debate que envolve o contexto supracitado e as contribuições das historiografias francesa e inglesa, também é herdeira do pensamento de Gramsci. Neste sentido, um dos temas que permeia as obras com a micro-análise é a “classe subalterna” que Antonio Gramsci desenvolveu. Para apreender a classe subalterna, esta forma de olhar o passado foi posta no nível das relações interpessoais. Fora na pretensão de diminuir o escopo que se apreendeu uma saída para as questões sobre a disciplina em voga na época, a história quase biográfica trazia o sentido de analisar não as “gestas dos reis”, mas àqueles que construíram Tebas das sete portas. A microstorie abriu um campo de possibilidades onde se dava agora a voz tirada no passado do moleiro num processo da Igreja Católica, Menocchio teve sua voz resgatada por Carlo Ginzburg em sua análise microscópica.
Da mesma maneira, porém um pouco antes, procurava-se, na Inglaterra, resgatar a história do “pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do tear ‘obsoleto’, o artesão ‘utópico’ (...)”. A intenção aqui também era uma análise qualitativa do passado. Nestas páginas de um curto, porém denso, prefácio, Thompson preparava o campo para sua análise vista de baixo. Ver por baixo o passado possibilitaria ao historiador perceber a história dos vencidos, dos pobres soldados que são extirpados da história, do trabalhador que construiu uma cidade e que não teve sua obra reconhecida, etc. Quando se vê de baixo para cima, percebe-se primeiro a classe subalterna; neste sentido, pode-se perceber a proximidade da história vista de baixo e a micro-história, pois, para além da qualidade da vida que ficou no passado, busca-se àqueles que foram esquecidos, silenciados: pobres agricultores, pequenos soldados, moleiros que se diferenciam do seu vilarejo, trabalhadores que formam consciência de classe...
Não é interesse esgotar o assunto da micro-história e da história vista de baixo nestas poucas linhas, para isso seria preciso uma coleção não muito pequena. A proposta aqui é lançar luz sobre um debate muito fecundo que perpassa já seis décadas e não deixa de ser atual. A tentativa de apreender uma história que possibilite uma nova visão deu ao mundo historiográfico novos problemas, estamos num tempo senão tão diferente, pelo menos com suas peculiaridades. Isso exige de nós, pretensos historiadores, uma “vontade de saber” que possibilite outras visões. Duas formas de olhar o passado deram aos historiadores ferramentas deveras boas para esta percepção, e mesmo com o tempo, não se tornou ainda obsoleto, porém, temos de desenvolver nossas ferramentas. Faz-se necessário uma nova maneira de olhar o passado. A dialética do micro e do macro e a história que se faz de baixo nos deu excelentes obras, porém outros tempos exigem outras teorias que modificam a prática que por sua vez fazem necessidade de nova teoria.
Apêndice
Algumas obras destes historiadores para melhor compreensão destas formas de olhar o passado:
THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa.
________. A história vista de baixo.
GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social.
________. Repensar a micro-história?
LEVI, Giovanni. Sobre a micro história.
_______. Herança imaterial. Carreira de um exorcista no Piemonte do século XVII.
GINZBURG, Carlo. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário.
_______. Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito.
“Um historiador deve estar decididamente interessado, muito além do permitido pelos teleologistas, na qualidade de vida, nos sofrimentos e satisfações daqueles que vivem e morrem em tempo não redimido”.
Edward Palmer Thompson
Certa vez um historiador britânico, dos mais afeitos à renovação de sua disciplina e também de uma antiga tradição, compreendeu que se deve escapar da perigosa tentativa de apreender a história teleológicamente. Dessa forma, o que o tal historiador pretendia era resgatar dos “ares superiores de condescendência da posteridade” o qualitativo da vida destes sujeitos passados. Edward Palmer Thompson, um dos precursores da idéia de História Vista a partir de Baixo (History from Below), inovou a historiografia inglesa, não só a marxista, mas como todo debate acerca da interdisciplinaridade e da história social.
Na Itália, os anos eram de decadência para a esquerda que se mostrava cansada após os atos terroristas e o retorno do conservadorismo. A necessidade de suplantar aquele vácuo era grande, as soluções imaginadas vinham de fora. Era fora da Itália que se produziam as matérias primas para o diálogo entre a História e as outras Ciências Sociais. Bem disse um autor que a historiografia italiana muito devia à francesa e que a saída dos italianos neste “mercado historiográfico” era a micro-história, foram Carlo Ginzburg e Carlo Poni que fizeram estas observações no final dos anos de 1970. E os italianos deram ao mundo a micro-análise, a possibilidade da perspectiva ao microscópio.
As duas maneiras de observar o passado surgiram num contexto similar, nos idos finais dos anos de 1950 e no decorrer dos 1970. As personagens desta aproximação partem, obviamente, de uma formação diversa, mas se aproximam no decorrer de suas vidas intelectuais. Com efeito, Thompson, Ginzburg, Levi e Grendi, têm alguns pontos característicos entre si. É o olhar ao subalterno, a tentativa de captar a qualidade do vivido, a busca da inovação de seus campos de pesquisa, a atenção dispensada à interdisciplinaridade, e, sobretudo, a fuga do discurso sobre a decadência da razão, que unem estes quatros historiadores.
Daqueles historiadores citados no parágrafo acima, sem dúvidas o menos conhecido do leitor brasileiro é Grendi, ao passo que Ginzburg e Thompson são celebres leituras dos estudantes de cá. Porém, entre Thompson e Ginzburg existe uma conexão, um historiador que saíra da Itália para se aprimorar em Londres e no retorno ao país natal trouxe daquela cidade todo debate sobre a história social e a efervescência que girava em torno deste debate, este historiador era Edoardo Grendi. Levando para a Itália toda uma bagagem de discussões sobre a economia, a antropologia econômica, as ciências sociais (em particular a sociologia) e etc., para uma abordagem da história local em Gênova; Grendi influenciará os estudos de Ginzburg e Levi, lembrando que aquele volta à Itália no começo dos anos de 1960 quando Levi e Ginzburg estão nos seus primeiros escritos.
Da história local para a micro-história, a interferência da história social e da antropologia foram demasiadamente importantes. Buscando analisar uma fonte serial com um maior rigor qualitativo, escrevia-se uma história que procurava articular o micro com o macro. A micro-análise, fruto de todo este debate que envolve o contexto supracitado e as contribuições das historiografias francesa e inglesa, também é herdeira do pensamento de Gramsci. Neste sentido, um dos temas que permeia as obras com a micro-análise é a “classe subalterna” que Antonio Gramsci desenvolveu. Para apreender a classe subalterna, esta forma de olhar o passado foi posta no nível das relações interpessoais. Fora na pretensão de diminuir o escopo que se apreendeu uma saída para as questões sobre a disciplina em voga na época, a história quase biográfica trazia o sentido de analisar não as “gestas dos reis”, mas àqueles que construíram Tebas das sete portas. A microstorie abriu um campo de possibilidades onde se dava agora a voz tirada no passado do moleiro num processo da Igreja Católica, Menocchio teve sua voz resgatada por Carlo Ginzburg em sua análise microscópica.
Da mesma maneira, porém um pouco antes, procurava-se, na Inglaterra, resgatar a história do “pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão do tear ‘obsoleto’, o artesão ‘utópico’ (...)”. A intenção aqui também era uma análise qualitativa do passado. Nestas páginas de um curto, porém denso, prefácio, Thompson preparava o campo para sua análise vista de baixo. Ver por baixo o passado possibilitaria ao historiador perceber a história dos vencidos, dos pobres soldados que são extirpados da história, do trabalhador que construiu uma cidade e que não teve sua obra reconhecida, etc. Quando se vê de baixo para cima, percebe-se primeiro a classe subalterna; neste sentido, pode-se perceber a proximidade da história vista de baixo e a micro-história, pois, para além da qualidade da vida que ficou no passado, busca-se àqueles que foram esquecidos, silenciados: pobres agricultores, pequenos soldados, moleiros que se diferenciam do seu vilarejo, trabalhadores que formam consciência de classe...
Não é interesse esgotar o assunto da micro-história e da história vista de baixo nestas poucas linhas, para isso seria preciso uma coleção não muito pequena. A proposta aqui é lançar luz sobre um debate muito fecundo que perpassa já seis décadas e não deixa de ser atual. A tentativa de apreender uma história que possibilite uma nova visão deu ao mundo historiográfico novos problemas, estamos num tempo senão tão diferente, pelo menos com suas peculiaridades. Isso exige de nós, pretensos historiadores, uma “vontade de saber” que possibilite outras visões. Duas formas de olhar o passado deram aos historiadores ferramentas deveras boas para esta percepção, e mesmo com o tempo, não se tornou ainda obsoleto, porém, temos de desenvolver nossas ferramentas. Faz-se necessário uma nova maneira de olhar o passado. A dialética do micro e do macro e a história que se faz de baixo nos deu excelentes obras, porém outros tempos exigem outras teorias que modificam a prática que por sua vez fazem necessidade de nova teoria.
Apêndice
Algumas obras destes historiadores para melhor compreensão destas formas de olhar o passado:
THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa.
________. A história vista de baixo.
GRENDI, Edoardo. Microanálise e história social.
________. Repensar a micro-história?
LEVI, Giovanni. Sobre a micro história.
_______. Herança imaterial. Carreira de um exorcista no Piemonte do século XVII.
GINZBURG, Carlo. Sinais. Raízes de um paradigma indiciário.
_______. Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito.
Muito bom. Semestre passado, com a Lorelai em Int. Est. Hist. II, lemos Ginzburg, Thompson, Bakhtin, Hill e cia. A ênfase se deu no âmbito da cultura popular. Thompson escarafucha no homem simples sem vê-lo de forma quantitativa, como um número, uma grande massa ou curva matemática. Sempre dando nomes aos vultos do cenário popular. Quanto a metodologia, torna-se nítido a crítica feita ao trabalhos quantitativos, que na visão de Thompson, pouco se falava do homem comum tanto urbano quanto rural. Uma sacação, que percebi, desses neomarxistas - o Thompson em questão - é que os fenômenos econômicos não são vistos como prioritários nas transformações sociais e na verdade n ão há formas de hierarquizar tais transformações, dialogando com o político, ideológico, religioso, econômico, social, cultural, o que acaba por dar um caráter, afunilado ao nosso tempo, interdisciplinar. Gostei muito véio. Finalizo com uma frase da historiografia francesa: " O homem é mais filho do seu tempo do que de seus pais" Marc Bloch ALEXANDER LIMA REIS HISTÓRIA UERJ
ResponderExcluirMuito obrigado. Cara, ao que me parece, no final dos anos de 1950 e a partir de 1960, existe uma tentativa de cuidar mais deste homem comum. Ainda não tenho todas as referências destes autores como Thompson e os italianos citados, mas creio que suas leituras vão muito de encontro com Antonio Gramsci e Walter Benjamin. Estes dois pensadores, italiano e francês, colocaram - ou tentaram, ao menos - ênfase no estudo das pessoas comuns, não só no passado. É curioso perceber que estes dois pensadores foram vítimas dos regimes fascistas, assim como os parentes de Ginzburg e Levi.
ExcluirSobre esta interpretação que desfocaliza o econômico, ela não ocorre em detrimento do fator econômico, mas correlacionando este dado com outros culturais, sociais e políticos. Existe um autor que vai influenciar um pouco este debate que é Karl Polanyi (A grande transformação), ele procura analisar o nascimento do capitalismo não só pelo viés econômico.
Para encerrar, gostaria de fazer também uma citação de Bloch: "Resguardemo-nos de retirar de nossa ciência sua parte de poesia. Resguardemo-nos sobretudo, já surpreendi essa sensação em alguns, de enrubescer por isso. Seria uma espantosa tolice acreditar que, por exercer sobre a sensibilidade um apelo tão poderoso, ela devesse ser menos capaz de satisfazer também nossa inteligência." Uma bela apologia ao nosso ofício.
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