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11 de novembro de 2010

Ainda sobre Ítaca(s) e viagem (Parte II)

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Se um historiador pensa em escrever uma narrativa do passado buscando já de início chegar à determinada conclusão, se acredita já saber o “fim”, todo o percurso que se propôs a “viajar” perderá seu sentido, dado que não seria necessário viajar para isso: chegar a conclusões precipitadas sem conhecer, buscando no passado somente a constatação destas.

Olhar para os acontecimentos de nosso passado e compreendê-los apenas em função do nosso presente é um esforço vão, equivocado, pois buscará explicar os processos vividos em um contexto passado a partir de referências do presente, além de levar a visões deterministas – como pensar toda a experiência humana vivida até o momento como uma preparação, uma evolução para se chegar às sociedades atuais. Um viajante não deve sair do seu país acreditando já saber o que a viagem irá lhe proporcionar, mas sim partir do seu lugar disposto a ver a particularidade, a diferença, a especificidade do mundo do outro, e assim ser capaz de pensar outras formas de se relacionar com o mundo, outras concepções, outras formas de dar sentido ao mundo, diferentes de seus referenciais anteriores à “partida”.

O distanciamento de si mesmo, do lugar (“físico” e temporal) onde me formei como indivíduo, abre um caminho para entender que aquele passado foi também um presente. As inúmeras experiências vividas no passado atendiam a visões, relações, interesses e expectativas específicas daquele tempo e lugar. Escrever história tendo “todo o tempo Ítaca na mente” produz uma compreensão dos acontecimentos fora do contexto que lhes deu legitimidade. E o que seria isso senão matar a possibilidade de vida de um tempo que já foi um presente, que se construiu e agiu, produzindo seu próprio sentido.

Nos esquecemos que “aquele presente”, logicamente, foi vivido como tal, enfrentando os problemas de seu tempo e as expectativas de um futuro completamente incerto, indefinido. As gerações de diferentes épocas conviviam com essa incógnita. Viviam e construíam seu cotidiano com perspectivas próprias, vivendo de acordo com suas possibilidades presentes e futuras.

Quando transformamos esse presente em nosso passado, numa idéia de pertencimento e até mesmo de origem, produzimos sentidos únicos e matamos as possibilidades de viver de formas diferentes, de viver outros presentes, para os contemporâneos de determinada época, ou seja, é dizer que um certo acontecimento só poderia ter acorrido como ocorreu. Dessa forma, conseguiríamos a façanha de matar os mortos: matar a possibilidade de vida, de estar em contínuo movimento, de viver daqueles mortos – matar duas vezes, silenciando a vida que existiu naquele passado. Isso seria negar às pessoas de determinado tempo e espaço, negar ao passado, a possibilidade de ser e existir Ítacas.

“Ítaca não te iludiu
Se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência.
E, agora, sabes o que significam Ítacas.”

3 comentários:

  1. "produzimos sentidos únicos e matamos as possibilidades de viver de formas diferentes, de viver outros presentes, para os contemporâneos de determinada época, ou seja, é dizer que um certo acontecimento só poderia ter acorrido como ocorreu."

    Mt bom!
    Falar sobre o passado no presente já é refazer esse passado e ter a possibilidade de modificar o agora, bem diria a clínica psicanalítica...

    Até!

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  2. Isso fica bastante claro com aquela velha frase “os gregos são o berço da civilização ocidental”, que supõe que a vida dos gregos, suas diversas possibilidades de existência conspiram para a formação da sociedade ocidental contemporânea, como se fossem uma sociedade infantil em relação à sociedade ocidental contemporânea, formada e completa.
    É sobre isso que a compreensão histórica trata, da capacidade de empatia de entender o outro nas suas possibilidades de ser, suas possibilidades de existência, e compreender essa prática diz respeito a muito mas do que ao fazer histórico, diz respeito a vida, a humanidade, à civilidade universal, ao humanismo enquanto valorização do homem, semelhante e diverso por excelência dos seus iguais.

    Ótimo texto Bruno XD

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  3. O comentário da Luiza me fez pensar sobre algumas coisas relacionadas à experiência humana. Não quero dizer que se deve olhar para o passado sob a perspectiva da psicanálise, mas... tem algo de psicanalítico no ato de olhar para o passado e tentar compreender certa experiência, pacifica-la para livrar dos "traumas", pacificar os acontecimentos que marcam de alguma maneira nossa formação (e entender porque agimos de determinada forma, ou como essas experiências influem na nossa maneira de ser).

    Não é olhar para o passado como se fosse nosso periodo de gestação ou de infancia (como se nós fossemos os adultos maduros né?). É a tentativa de compreensão do que aconteceu, do porque de ter acontecido e de que haviam sentidos para aquele acontecimento enquanto ele era um "presente".

    Um Abraço a todos.

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